W está sentado ao piano. Responde com timidez ao desafio lançado pelo colega que o acompanha na bateria. Aproxima o rosto do micro, as mãos no piano e ouve-se o primeiro verso de Tom Jobim. Ah... Insensatez. Uma das minhas preferidas. Eu que tinha viajado pela primeira vez até à ilha para ver futebol, vi-me enredada ao
primeiro acorde. A minha irmã ficou a fazer-me companhia no bar do hotel e assim que acabaram de tocar juntaram-se a nós. Não me lembro muito bem quem, nem como iniciou a conversa. A única coisa de que me lembro é da Insensatez a vibrar no ar e das conversas que se seguiram. Falava-se da Madeira, da situação política,
do Alberto João – que talvez pela proximidade e longevidade no poder – ali, longe do continente, perdia o Jardim. E olhava-se em volta e falava-se mais baixo. Eu, incrédula com tudo, a contar os anos que nos separavam de 74. Estávamos no mesmo país, mas não parecia. Contavam-se histórias de como as portas se fechavam para músicos depois de falarem abertamente com jornais ou revistas, depois de assumirem
publicamente que discordavam de quem assumia o poder. E voltava-se a olhar em volta, discretamente por cima do ombro, mas quase com a destreza de um médio a ler o jogo, a antecipar, e voltava-se a segredar.
Aquela conversa num bar de hotel viria a marcar-me e a surgir várias vezes ao longo dos anos. Estávamos em 2009. Não me lembro do onze inicial do Paredes que viria a enfrentar o Camacha no dia seguinte para a 3ª
eliminatória da Taça de Portugal. Razão principal – talvez única – da minha viagem. Do que aconteceu naquelas quatro linhas onde se diz ter acontecido o 1º jogo de futebol em Portugal só me lembro de uma infantilidade após uma falta. Pouco mais. Ah. Lembro-me que perdemos e que foi a primeira vez que a minha mãe foi comigo
ao futebol. Primeira e única, isso seria motivo mais do que suficiente para me obrigar a reter mais qualquer coisa do jogo, mas a memória não cede a “deveres”. Nesse 2009 a Madeira não me deixou saudade, não me agarrou, não me deixou cheia de vontade de voltar. Mantive contacto com o W. Falávamos quase todos os dias por
Skype depois do jantar e acho que foi um dos responsáveis por um aceso despertar político.
Quatorze anos depois voltei à ilha e perdi-me de amores. O mar a espreitar a cada encosta, a calmaria, o verde, o futebol em contraluz pelos relvados da marginal, a sidra e tremoços ao pôr-do-sol, a vista do estádio com o sol a cruzar as casas numa súplica de regresso.
Já estava a caminho do aeroporto, a pensar sobre esta Madeira que me deixaria saudades, a lembrar-me que desta vez não houve discussão política, nem insensatez ao piano, quando o senhor que me dirigia começou a conversar. Nasceu na ilha, aos 23 viajou até à Venezuela para visitar o irmão e por lá ficou 23 anos até ver um gangue entrar e pousar uma arma no balcão da padaria que geria e lhe pedir uma “vacina” mensal de mil euros
para os proteger de outros gangues locais. A falha de pagamento era cobrada com
rapto de familiares, contava-me. “Estávamos numa crise profunda. Não se vendia nada. Não havia farinha. Era muito cara. Uma crise imensa”. Nesse mesmo dia, há 6 anos, disse ao irmão que voltaria.
Pergunto-lhe se está feliz.
“Isto é um paraíso para mim. Quando aterrei aqui aqueles pensamentos... o que tu vias lá, as pessoas que matavam... que entravam nas casas, roubavam as casas, matavam as pessoas. Isso fica-nos sempre no dia a dia. Pensamos sempre nisso. Quando é que me vai acontecer a mim. Quando eu cheguei aqui... limpou tudo. Isto é um paraíso para mim. Até me arrepio.”
Os meus olhos a encherem-se de água porque me comovo fácil e porque já só queria ficar ali à conversa, fazer muitas perguntas, ouvir muitas histórias.
Esta Madeira deixou saudades e promessas de regresso.
E cada vez tenho mais a certeza, o que me fascina no futebol é o mundo que ele me dá a conhecer.