Hoje a pessoa que me conduziu até ao trabalho citou – indiretamente e sem saber que o fazia - um dos meus parágrafos preferidos do livro “As Horas” de Michael Cunningham. Memorizei-o em 2005 e nos últimos anos tem entoado com frequência na minha cabeça.
Eram 6h50 eu já estava ligeiramente atrasada e o Sr. Miguel também. Dizia ele que começava o dia com uma hora de atraso porque o carro elétrico não carregara durante a noite. Um problema num fusível ou algo do género.
– Olhe, minha menina, também não me chateei. Já devia ter começado, mas não foi um acidente, não é nenhuma doença. Não vale a pena desgastar-nos com estas coisas.
Percebi que pontuava quase todas as frases com o "(m)inha menina” sem a entoação paternalista que habitualmente a acompanha. Era quase querido, tanto quanto possível naquela distância que separa dois desconhecidos.
– A vida é mesmo assim, minha menina. Se virmos bem é cheia de coisas más, de problemas para resolver todos os dias, mas isso é o que faz a vida, ‘nha menina. Isso é o que nos diz que estamos vivos.
Descíamos a rua, a Sé do nosso lado esquerdo, São Bento logo à frente pela direita, eu fora do carro a aterrar nas últimas páginas do livro.
– Oh, nha menina, eu vejo pessoas que às vezes perdem a cabeça por coisas tão pequenas.
A minha mente viaja para outro excerto, desta vez da Luísa Costa Gomes da peça Nunca Nada de Ninguém:
"O que me aconteceu não é incrível, é completamente normal, passa-se com toda a gente.Mas é o facto de serem as coisas pequeninas, e a bola de neve, e... "
Regresso ao carro para concordar. É isso mesmo, Sr. Miguel. Não é sobre entrar em modo “poupança de energia”, é sobre estar consciente da inevitabilidade de tantas coisas e do quanto nos desgastamos com elas. É, talvez, sobre escolher batalhas, as que ainda conseguimos escolher.
“Vivemos as nossas vidas, fazemos seja o que for que fazemos e depois dormimos: é tão simples e tão normal como isso. Alguns atiram-se de janelas ou afogam-se, ou tomam comprimidos; um número maior morre por acidente, e a maioria, a imensa maioria é lentamente devorada por alguma doença ou, com muita sorte, pelo próprio tempo. Há apenas uma consolação: uma hora aqui ou ali em que as nossas vidas parecem, contra todas as probabilidades e expectativas, abrir-se de repente e dar-nos tudo quanto imaginámos, embora todos, exceto as crianças (e talvez até elas), saibamos que a estas horas se seguirão inevitavelmente outras, muito mais negras e difíceis. Mesmo assim, adoramos a cidade, a manhã, mesmo assim desejamos, acima de tudo, mais.” As Horas, Michael Cunningham