O 14º episódio do Histórias da Bola para Adormecer vem num dia especial. Foi antecipado para celebrar o aniversário da pessoa responsável pelo meu amor ao futebol. Dinis Machado escreveu um dia "o avô é, de um modo geral, um espaço humano inesquecível, um campeão de quimeras e uma bússola persistente, em mãos de netos, sobre os mares encapelados de noites de vida.”. Este episódio é dedicado ao meu avô por todas as histórias que me contou e viveu comigo.
Querido avô, O teu cachecol é meu outra vez.
Ainda me lembro da última vez que falámos. Estávamos na sala que me viu crescer, tu sentado no cadeirão e eu no sofá à tua frente. Tu procuravas por ti, já não eras exatamente tu, mas ainda andavas por ali. Estou certa de que me despedi de ti com dois beijos e um abraço como fazíamos sempre. Estupidamente não é disso que me lembro. Lembro-me como se fosse hoje da última coisa que me disseste: “Oh, minha filha, se queres que te diga, eu deste futebol não percebo nada.” (Na minha cabeça acrescentas-te o teu “palavra de honra”.) Falávamos do futebol de Lopetegui. Lá estávamos nós como de costume, como sempre nos conhecemos a falar de futebol. Ensinaste-me a ser do Porto. Acho que foste tu, se toda a família era benfiquista e se sempre me conheci assim. Todos os domingos regressava a ti para saber de muita coisa, mas estou certa que não tivemos uma única conversa em que não falámos da bola.
Numa dessas tardes de domingo, estavas no carro a ouvir o relato de um jogo qualquer. Como tanto gostavas. Era futebol para embalar. Entrei na rua com a Catarina e vimos-te logo. Saíste do carro para nos cumprimentar. Lembro-me bem de ter ver com o teu porte alto, olhos atentos, com um braço sobre porta do carro.
Perguntei-te se o Porto ainda podia ser campeão. Eras um adepto sensato, sem deslumbramentos, sem medo da verdade. Respondeste-me que sim. Fiquei reticente e tu percebeste. Mas voltaste a repetir com convicção.
Mais tarde, quando o Porto perdeu o campeonato, voltei a ti em busca de justificações. Disseste-me:
- Oh, minha filha, a tua irmã acabou de se mudar para o F.C.P. . Tinha de dizer que sim para ela não desmotivar.
Percebi tudo. O nosso amor era antigo por isso aguentava as verdades, mas os recém-chegados precisavam de uma dose de conforto. O episódio serviu para confirmar a imagem que tinha de ti: eras um senhor do futebol e nesse ano até suportei melhor ter menos um título no bolso.
Lembras-te de estares internado uma vez, em pleno apuramento para o mundial em 2013, e de me esconder com o meu portátil de enfermeiros e auxiliares, só para ver mais um jogo contigo? Eles fingiam que não me viam porque o nosso amor era ímpar e contaminava todos à sua volta. Separados quase por cinco décadas, por tamanha evolução do mundo, o futebol para nós era uma coisa imutável. Era mais um laço que nos unia. Eu esperava ouvir as tuas opiniões, sempre sábias, sempre sem ódio, sem mágoa. Sempre foste um senhor a ver futebol. Nunca te vi a perder a postura. Foi por isso que quando voltaste ao hospital pela última vez, quando te vi de olhos fechados sem saber exatamente se me ouvias ou não, te falei sem parar do Maxi Pereira. Corriam rumores de que o magano do Benfica vinha para o Porto. Eu queria espicaçar-te. Queria que tivesses vontade de abrir os olhos e dissesses que aquilo não fazia sentido nenhum. As outras pessoas no hospital olhavam para mim com ar confuso. Que raio de neta era eu que, ao ver o avô naquele estado, falava de futebol. Nenhum deles podia sequer imaginar o laço que tínhamos. A quantidade de vezes que me deitei ao teu lado para assistir ao futebol na RTP1. A avó sabia que eu a adorava, mas às vezes tinha ciúmes. Como daquela vez em que te dei o cachecol dos 120 anos do Porto e me disse que também queria um.
Depois de morreres a tia chamou-me e disse-me que tinha uma coisa para mim. Ali estava ele, imaculadamente guardado na caixa. O cachecol que te dei voltou para mim. Levei-o a passear este ano aos Aliados. O Futebol Clube do Porto foi campeão pela primeira vez desde que foste embora avô. E Portugal, o nosso Portugal foi Campeão da Europa. E o Paços desceu, mas não foi o único, o Freamunde também. Avô, aconteceu tanta coisa, o futebol mudou tanto e eu continuo zangada. Zangada com o futebol, não sei bem se pelo estado, se pela saudade que me provoca. Zangada porque não estás aqui para me dares ânimo nas derrotas. Zangada porque foste embora. De que me servem as vitórias do Porto, de que me serve o futebol se não o puder partilhar contigo? Uma coisa estou certa, se cá estivesses e ouvisses o que se diz (porque avô, podes até estranhar, mas acredita-me, hoje há mais conversa que jogo) estou certa que dirias: “Oh minha filha, se queres que te diga, eu deste futebol não percebo nada.” E eu havia de sorrir e de levar a tua palavra a sério.
Avô, o cachecol que te dei é meu outra vez.