Tentei não subverter completamente este episódio, mas não consegui. As histórias que vos trago hoje não são para embalar. Não servem para vos sossegar, nem para vos pôr a dormir. As histórias de hoje são para acordar, para relembrar, para questionar...
O futebol volta à cena hoje. O que, apesar de toda a polémica, traz uma pequena alegria aos nossos dias, mas é uma alegria amarga. E não me refiro às bancadas vazias. O Mundo está um caco, enquanto lutamos contra uma pandemia, os Estados Unidos são o epicentro de uma epidemia que povoa o mundo há milhares de anos e que parece não ter fim à vista. Refiro-me ao racismo, para que não fiquem dúvidas. Mas também podia falar das desigualdades que daí advêm, ou da onda crescente de pensamentos fascistas. Neste contexto o regresso do futebol parece-me absurdo.
Lembro-me de ler sobre campeonatos que se desenrolaram enquanto o mundo enfrentava grandes guerras e de pensar que “tempos ridículos”, “que absurdo”.
Hoje não consigo evitar perguntar: Daqui a cem anos, o que pensarão de nós, deste presente?
No teatro existe um conceito conhecido como “Efeito de distanciação/distanciamento” ou "efeito brechtiano", originado por Bertolt Brecht. É usado, por exemplo, numa peça que muitos de vocês devem ter lido no 12º ano chamada Felizmente à Luar. Sttau Monteiro evocava situações e personagens do passado usando-as como pretexto para falar do presente. A lógica primária aqui é: estamos tão envolvidos num determinado contexto que, por vezes, perdemos a perspetiva crítica, ao olharmos com algum distanciamento, podemos ver o que não conseguiríamos ver e agir sobre ele (contexto).
O futebol, tal como o teatro, é o espelho da sociedade. Deve agir, sem medo. Estar em cena quando o mundo está aos trambolhões, não é necessariamente mau. Se agirmos sobre isto. Se estivermos do lado certo. O palco é enorme e observado por milhões.
Vamos usá-lo com sabedoria?
As histórias que vos trago hoje são excertos dos livros: Espelhos e Futebol ao sol e à sombra, do preferido Eduardo Galeano.
Nas Olimpíadas de 1936, o país natal de Hitler, foi derrotado pela seleção peruana de futebol. O árbitro, que anulou três golos peruanos, fez tudo o que pôde e não pôde para evitar que o Fuhrer tivesse esse desgosto, mas a Áustria perdeu por quatro a dois. No dia seguinte, as autoridades olímpicas puseram as coisas no seu lugar. O jogo foi anulado. Não porque a derrota ariana fosse inadmissível contra uma linha de ataque que, por alguma razão, se chamava compressor negro, mas porque, segundo as autoridades, o público invadira o campo antes do fim do jogo. O Peru abandonou as Olimpíadas e o país de Hitler conquistou o segundo lugar no torneio. Itália, a Itália de Mussolini, ganhou o primeiro lugar.
(excerto de Espelhos, pág. 335)
Nessas olimpíadas, que Hitler organizou para consagrar a superioridade da sua raça, a estrela mais brilhante foi um negro, neto de escravos, nascido no Alabama. Hitler não teve outro remédio senão engolir quatro sapos: as quatro medalhas de ouro que Owens conquistou em velocidade e salto em comprimento. O mundo inteiro festejou essas vitórias da democracia contra o racismo. Quando o campeão regressou ao seu país, não recebeu nenhuma felicitação do presidente nem foi convidado para a Casa Branca. Voltou ao mesmo de sempre:
- Entrou nos autocarros pela porta de trás
- comeu em restaurantes para negros
- usou casas de banho para negros
- hospedou-se em hotéis para negros. (...) (excerto de Espelhos, pág. 336)
O futebol e a pátria estão sempre ligados; e os políticos e os ditadores aproveitam-se desses vínculos de identidade com frequência. A equipa italiana ganhou os mundiais de 1934 e 1938 em nome da pátria e de Mussolini, e os seus jogadores começavam e acabavam cada jogo dando vivas a Itália e saudando o público com o braço estendido.
Também para os nazis, o futebol era uma questão de Estado.
Na Ucrânia, um monumento recorda os jogadores do Dínamo de Kiev de 1942. Em plena ocupação alemã, eles cometeram a loucura de derrotar uma seleção de Hitler no estádio local. Tinham sido avisados:
- Se ganharem, morrem.
Entraram, resignados a perder, tremendo de medo e fome, mas não conseguiram dominar a vontade de ser dignos. Foram os onze fuzilados com o equipamento vestido, no cimo de um barranco, quando o jogo terminou. (excerto de Futebol ao sol e à sombra, pág.51)
Em 2006, trinta e dois países, de cinco continentes, disputaram sessenta e quatro jogos em doze estádios, imponentes, belos, funcionais da Alemanha unificada: onze estádios de oeste e só um de leste.
Este mundial foi marcado pelas palavras de ordem que as seleções arvoraram, no início dos jogos, contra a praga universal do racismo. O assunto fervia. Nas vésperas do torneio, o dirigente político francês Jean-Marie Le-Pen afirmou que a França não se reconhecia nos seus jogadores, porque eram quase todos negros e porque o seu capitão, Zinedine Zidane, mais argelino do que francês, não cantava o hino, e o vice-presidente do Senado Italiano, Roberto Calderoli, deu eco às suas palavras dizendo que os jogadores da seleção francesa eram negros, islamitas, comunistas que preferiam a Internacional à Marselhesa, e Meca a Belém. Pouco antes, o treinador da seleção espanhola, Luís Aragonés, tinha chamado preto de merda ao jogador francês Thierry-Henry, e o presidente perpétuo do futebol sul-americano, Nicólas Leoz (léos) , apresentou a sua autobiografia dizendo que tinha nascido numa povoação onde viviam trinta pessoas e cem índios. (excerto de Futebol ao sol e à sombra, pág.278)
O século XX, que nasceu anunciando paz e justiça, morreu banhado em sangue e deixou um mundo muito mais injusto do que aquele que tinha encontrado. O século XXI, que também nasceu anunciando paz e justiça, está a seguir os passos do século anterior. Na minha infância, eu estava convencido de que tudo o que se perdia na terra ia parar à lua. No entanto, os astronautas não encontraram sonhos perigosos, nem promessas traídas, nem esperanças destruídas. Se não estão na lua, onde estão? Será que não se perderam na terra? Será que se esconderam na terra? (excerto de Espelhos, pág. 410)