lamúria
lamentação interminável, que importuna e que a nada leva; queixume, queixa.
e vírgulas fora do lugar.
Ando inquieta. O tempo foge-me pelas mãos. Sinto que me queixo muitas vezes. Aqui reside o primeiro problema. Chego ao fim do dia em lamúrias. É quando desenrolo o papel das lamentações que me confronto com a absoluta desgraça que me rodeia. Que legitimidade tenho eu para me queixar da mesquinhez dos meus problemas quando até nas redes sociais se anunciam bombardeamentos (além dos metafóricos)?
É uma merda. A maior das empatias faz-nos compadecer com o terror vizinho, mas nada nos atormenta tanta como os nossos próprios (um pleonasmo necessário) problemas, por muito minúsculos que sejam.
Quando tinha 16/17 anos fui com acompanhar um professor que era psicólogo e tinha um grupo de teatro num bairro aqui do norte. Pediu-me para filmar um ensaio. Eu estudava numa escola profissional de teatro, estava no 10º ou 11º ano e tudo era uma descoberta. Queria estar ao mesmo tempo em todo o lado. Na viagem da escola até à sala de ensaios, falámos muito, o professor era um poço de perguntas. Questionou-me sobre a arquitetura de alguns bairros que, na sua opinião, se assemelhavam muito a prisões. Nunca mais me esqueci disso.
O ensaio nunca chegou a acontecer, pelo menos não no seu formato tradicional. Deu lugar a uma roda de revelações:
“O meu marido... Basta estar uma coisinha fora do sítio. Se eu arrumo alguma coisa de forma diferente... Se mudo as coisas de lugar... ... Acha que meti algum homem lá em casa... ... Mas eu sei, doutor... ... Eu sei que há gente que está muito pior que eu.”
Faltam coisas neste monólogo, outrora diálogo. Faltam coisas porque não queria entregá lo à ficção. Estas foram as palavras que memorizei. Exatamente assim.
Mais tarde chegou um miúdo. Devia ter uns 7-8 anos. Soube que se tinha tentado matar. Eu tinha uns 16 anos, vivia no epicentro emocional dos meus dramas adolescentes.
Paralisei:
“Como é que uma criança desta idade pode ter já uma perceção tão negra da vida, do mundo, para não querer viver? O que é que ele já viu e sentiu?” Lembro-me de ter pensado na altura. Hoje sei que poderão existir várias explicações clínicas, mas isso não importa.
Quinze anos depois, este dia continua a visitar-me. Não vem para tirar conclusões. Não vem em jeito de cobrança, não se veste de moralista. Passa só para lembrar. Para questionar, talvez.