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EP. 9 - Rumo a Istambul

Memória escrita por Rui Amorim

6 de julho de 2020

Milhas que as carreguem! Desta vez, não são creditadas no cartão de passageiro frequente com todo aquele prazer. O bilhete condena-me a viajar no dia de mais um aniversário do meu pai. Um abraço e até à fatia de bolo no meu regresso: o dever chama-me, lá longe, onde a Europa e a Ásia se beijam, enroscadas na mesma nação. A Turquia como destino ainda desconhecido, Istambul a fazer borbulhar o cérebro de expectativa. O frenesim e o trânsito louco à chegada – para lá da meia-noite!!! – retiram do mute relatos e recomendações mil dos colegas de redação, levados pelo entusiasmo sempre que se fala da antiga Constantinopla do Bósforo: de facto, é tudo aquilo, talvez ainda mais.

Na minha primeira passagem por ali – a segunda seria em escala para e de Zaporizhia, na Ucrânia (sim, a cidade existe, acham que vos mentia?), com uma história de um taxista que ficou a muito pouco de sentir o calor das minhas mãos no pescoço –, tenho por missão contar mais um capítulo do FC Porto na Liga dos Campeões, ainda a fazer contas ao apuramento em casa do Besiktas do bem-aventurado Quaresma… e Pepe. Hotel à porta do extraordinário Vodafone Arena, o cansaço da jornada a empurrar-me para a cama, boa noite, foi um gosto. Ao segundo dia, a azáfama da véspera de jogo. Pedidos de acreditação confirmados no limite, conferências – ainda hoje me custa a engolir o meu inatacável sentido profissional: na oportunidade por mim conquistada de meter o pezinho em território asiático, cedo aos meus colegas da televisão os dois lugares vagos na carrinha da press que faz a ligação ao centro de estágio do adversário –, páginas para encher, o jantar a cair para tarde.

Dia de jogo. A Taksim, a Mesquita Azul, a Hagia Sophia, o Grande Bazar, os sabores, os cheiros, os sons compensam e votam ao esquecimento os humores de um despertar difícil. Acelera-se o passo, acerta-se o relógio, entramos no aquecimento. Não dei a volta ao mundo atrás da bola, mas guardo recordações de palcos nobres em que o caminho até à nossa bancada é um corridinho e com as maiores mordomias. Ao estilo de uma claque de bons rapazes, a família da informação cá do burgo aguarda pela abertura do portão que lhe está destinado: e nem um pio. Marcha lenta, segurança militar a tirar-nos a pinta, a vasculhar malas, malinhas e maletas nas nossas mãos ou às nossas costas, enquanto nos seus braços repousam aquelas coisas que faziam de nós heróis durante a infância, na memória do polegar espetado para cima e do indicador em riste, quando vestíamos a pele de polícias ou ladrões. Chamam-lhes armas. Mas a sério. E bem maiores.

Sãos e salvos, é só mais uma sombria trincheira – aquele corredor infindável e esplendorosamente grafitado, com luz vermelha projetada sobre o olho de uma imponente águia negra, é uma proposta de intimidação – e um elevador, com uns quantos ziguezagues pelo meio, até ao nosso ponto de reportagem naquele majestoso anfiteatro. Enquadramento notável, visão perfeita para o relvado, balcão com televisões individuais, conforto e funcionalidade de pedir para ali e para levar. É na última fila, na cadeira mais próxima da fronteira, que os vejo chegar: tenho os adeptos da casa a um passou-bem de distância. É dali, também, que registo a sua veneração a Erdogan – enfim… –, um gigante de pano desenrolado no topo de uma das bancadas.

Hora de missa. Craques na passerelle, o hino da Champions que nunca nos deixa de arrepiar, o apito inicial já com muitos caracteres debitados: agora, é ver como ela rola. Ver, porque ouvir… O estádio tem um vozeirão que nos sacode até a alma, ensurdece-nos (Nicósia traz-me a recordação da cópia mais fiel, que me perdoem Manchester, Roma ou Paris, por exemplo – Anfield à parte, que ainda é promessa por cumprir). A atmosfera é fascinantemente adversa para quem não é dali, mastiga-os, cospe-os.

A delirante amostra servida em segundos não apavora um dragão, quanto mais onze: meia hora e Felipe inaugura o marcador. Não me lembro de eu ou de qualquer colega meu termos arrancado o cruzamento ou de termos aparecido no centro da área a atirar certeiro à baliza, mas os olhos… e a fúria estão postos em nós, depois de uma curta manifestação patriótica: «Golo», refrão de um segundo repetido por dois ou três. Os meus vizinhos turcos fazem cara de maus – como se carecessem de algum esforço… –, disparam impropérios a eito – vale uma aposta que eram impropérios? – com jatos de saliva a perderem-se pelos ares naquela explosão de raiva e rodam os pulsos a sugerir ilegalidade, até mais do que isso. (Pela proximidade, ainda bem que não estavam no Bessa quando me vinguei das provocações dos jornalistas espanhóis e levantei bem alto os braços depois do Ricardo, de luvas, ter marcado o penálti que levou o Boavista às meias-finais da Taça UEFA, em 2003, à custa do Málaga.)

Antes do intervalo, Talisca – um talento enorme que ficou por contar no Benfica – repõe a igualdade… e o nosso sossego, mesmo sem escaparmos a risos de escárnio e a alguns, menos, impropérios – dobro a aposta como eram impropérios. Sob o signo do equilíbrio, avança-se até um final sem mortos nem feridos: todos para casa! O empate coroa o líder Besiktas, abre-lhe a porta dos oitavos e deixa o FC Porto a depender dele próprio a uma jornada do fim. Antes de arrumar a tralha e descer para ouvir o mister e os jogadores, ainda há tempo para embrulhar um pouco do ambiente. Telemóvel desbloqueado, câmara ligada, opção de vídeo acionada para guardar o fim de festa. Estabilizar o aparelho o mais possível revela-se uma tentativa frustrada quase à nascença. Ao fim de hora e meia a mostrar-me os dentes, o pelotão de inimigos quer fumar o cachimbo da paz e atira-me um braço para cima do meu ombro, envolvendo-me, obrigatoriamente, numa coreografia simplória e pulante, de sorriso largo, entoando um cântico que, por certo, irei para a cova sem saber o que diz – mas, sim, era capaz de ter algum impropério…