Perto da minha rua há um pequeno parque. Faz fronteira com a escola e tem, literalmente, meia dúzia de bancos. Entre a escola e o parque desagua uma rua que termina num muro "grafitado". Esta espécie de pequeno largo foi conquistada pelos miúdos da zona, os carros não entram aqui agora.
O sol está alto e aproveito para sair. Não o faço há semanas. Entro na rua. Um miúdo joga à bola, terá uns 11 ou 12 anos. Remata contra a parede e eu fico à espera de que a trajetória da bola se cruze com a minha. Não acontece. Podia substituir o muro, podia retribuir os remates, em vez disso continuo o meu percurso sem interferir na jogada. O miúdo deixa de rematar para fazer uma cueca à mãe que está sentada no passeio. Ao lado da mãe está o irmão bem mais novo – de uns 6 anos, talvez – traz vestida uma camisola do Atlético de Madrid com o 7 estampado: João Félix. Do outro lado do passeio, à sombra, está mais um miúdo sentado. É o irmão do meio, segura uma bola no colo e veste um ar aborrecido. A mãe pergunta-lhe se está melhor, ele diz que sim em miminho. Está amuado, reconheço-me na criança.
O meu olhar viaja até à entrada do parque para ver chegar um casal com a filha pequena. De cabelo solto adornado com um lacinho cor-de-rosa e vestidinho verde, a pequenina traz uma bola de futebol nas mãos. A imagem é interrompida por dois tipos que caminham na minha direção. A rua é larga e está quase deserta. Eu estou sentada na berma do passeio. Eles atravessam a estrada – larga – deserta – e sobem o passeio a meio braço de distância de mim. Cruzam a minha trajetória, como eu cruzei a da bola. Deixam um rasto a cigarro no ar.
Volto à harmonia do parque e do largo. Os irmãos continuam a jogar. A menina de vestidinho verde brinca com o pai, uma adolescente anda de bicicleta, as gaivotas voam a baixa altitude, cães passeiam os donos. Tudo flui naturalmente, todas as personagens ocupam o largo sem nunca se atropelarem. Os sinos da igreja fazem-se ouvir: um toque, 3h30. Na casa da avó, que ficava em frente de uma outra igreja, quando andávamos pelo campo a trabalhar ou a brincar, sabíamos as horas pelo repicar dos sinos, mas isso já são outros contos...
Escrevo para me obrigar a estar aqui, no presente, por isso regresso ao parque. A adolescente cedeu a bicicleta ao pai, é a vez dele de dar a volta à escola. Traz vestida uma camisa e um casaco de cabedal, uns óculos escuros para acompanhar. Uma gaivota acaba de passar num voo raso mesmo por cima da minha cabeça. E se ela se aliviasse agora? E se me acertasse em cheio? Pelo menos animaria isto. Vá lá, gaivota, faz o que tens a fazer. Acerta-me! Se me acertares em cheio terei uma história gira para contar. Olho para cima. Nada. A gaivota abandonou. A gaivota não quer nada comigo. Nada.
O meu pensamento é interrompido pelo pequeno João Félix. Vem a correr na minha direção. Vejo a bola a passar mesmo à minha frente, está a descer a rua a toda a velocidade. É a minha oportunidade, se me levantar agora ainda a apanho. Há alguma coisa a impedir-me, estou longe e nostálgica. Não importa, esta luta é do João Félix, ele precisa desta conquista. A bola continua a rolar rua abaixo, o pequeno 7 corre e ri ao mesmo tempo. Está confiante, um último esforço e alcança a bola. Vitória para o Atlético de Madrid de Mafamude. Alguém diz: “que sorte!” Mas não foi sorte, foi audácia, destreza, velocidade.
A adolescente da bicicleta faz 11 anos no dia 9 de maio. Ouvi o pai dela dizer ao avô de um rapaz de uma outra bicicleta, bem mais pequena e com rodinhas. Estou a largos metros deles, mas consigo ouvi-los, apanhar umas frases soltas. Achei que a adolescente fosse mais velha, o que me faz pensar que o mais provável é ter errado em todas as outras idades. O vento começa a fazer-se sentir e traz com ele o frio, é o lembrete para ir embora, mas há vida cá fora...
Um carro entra no largo para estacionar, sem interromper a partida dos irmãos que se faz agora só com os mais velhos num um para um. O João Félix está sentado no banco cabisbaixo. Consigo ouvir um dos irmãos a dizer à mãe-árbitro que se der a bola ao 7, ele vai deixá-la fugir. Eu sei, João Félix de Mafamude, eu sei. Eles não te compreendem. Não sabem que se deixas a bola fugir é só para que possas correr mais um pouco e alargar as fronteiras do teu campo.
Está mais frio e a vida no parque começa a estagnar, o que me faz pensar que é tempo de regressar. Se ao menos aparecesse a gaivota... Os sinos da igreja tocam: 4 horas.
Adeus, miúdos!
Adeus, largo!
(Ps. Parabéns, miúda da bicicleta. Primaveras mais quentes e sorridentes te esperam.)