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A primeira vez que eu vi um

30 de maio de 2021

Tinha uns doze ou treze anos. Lembro-me que andava no 7º ano, tinha o horário da manhã. Regra geral quando a campainha tocava às 13h25 marcava o final de um dia de aulas. Costumava ir a pé para casa com outros colegas que tal como eu moravam perto da estação, precisamente por isso não faltavam crianças e adultos num percurso que deveria demorar uns vinte minutos. Na estrada formava-se uma longa fila de carros que partia das escolas rumo à cidade. Num desses dias estava quase a chegar à estação – e por isso a cinco minutos de casa –  quando ouvi de um dos carros que abrandava na fila:

- Menina, menina!

Eu era uma menina de facto, pequenita, franzina.

Aproximei-me certa de que me pediriam informações. Estava já colada ao carro quando ouvi:

- Olha... Olha para aqui!  

Dizia o sujeito de pénis de fora em pleno ato de masturbação. Dizia ele, ali, no meio daquele "trânsito escolar", às 13h30 de uma quarta-feira. 

Eu recuei assustada. Os meus colegas não conseguiram perceber exatamente o que tinha acontecido. Ainda assim, lembro-me que a única colega que viu a cena toda desatou a rir, até hoje não consegui perceber porquê. Eu estava de facto em choque. Já tinha queda para a dramatização e achava que aquela estupidez me iria traumatizar. Foi assim a primeira vez que vi um pénis. Não estava curiosa. Não pedi para ver. Foi-me imposto. Um pénis absolutamente ereto. Um pénis ereto na mão de um homem adulto.

- Ai, Márcia! É preciso ser tão descritiva?

E porque não? Acham que as imagens que estas palavras desenham na vossa cabeça são piores do que as reais? 

Retomando. Não pedi para ver aquele pénis. Foi-me imposto. Como viria acontecer incontáveis vezes ao longo da minha vida, na rua – e não, não necessariamente à noite – em estações de comboios e autocarros, na praia, em carros estacionados...

Durante a adolescência fui mantendo um registo mental das vezes e locais onde isto acontecia. Era uma espécie de registo de alerta, de prevenção. Era um esboço de um grito de revolta, mas em vão porque grande parte dos adultos que me rodeavam achavam tudo isto asqueroso, mas... normal. Eram coisas que aconteciam. E com o tempo comecei também eu a normalizar. Agora só tenho memória clara de mais três vezes, embora saiba que foram muitas mais. 

O mais ridículo é que sempre achei que me iria impor. Sempre fui essa miúda na escola. A que ia a todos os debates, a que discutia futebol com os rapazes e não tinha medo de (também) levantar a voz. A que queria saber os porquês, a que com metro e meio de altura se metia no meio de cenas de pancadaria da escola porque achava que podia acabar com aquilo. 

Dei por mim a ser incapaz de me defender. Incontáveis vezes. E olhem que até me armava em durona. Era eu que fingia não ter medo e ficava na ponta da cama quando dormíamos todos na casa da avó na aldeia. A cama estava encostada à parede por isso alguém tinha de dormir no lado oposto, o lado de fora. Entre os quatro e, apesar de não ser a mais velha dos primos, assumia sempre o lugar porque queria provar que era uma parvoíce isso de ter medo do escuro. Assim, era também eu eleita para apagar a luz e recuar às escuras para a cama. Acho que tinha mais medo de assumir ter medo do que de tudo o resto e isso acabava por me dar coragem. Hoje sinto que não mudei muito. Continuo a ter medo de assumir que tenho medo. 

 

Quando andava na escola primária jogávamos ao caça beijinhos. Era um jogo perfeitamente inocente. Um beijinho ultra rápido na bochecha quando apanhados. Um dia, já a brincadeira tinha acabado, estávamos à porta da sala e não sei muito bem porquê tinha os rapazes todos em cima de mim. Ainda tenho a imagem na cabeça. Lembro-me que estava sentada no chão. Tinha caído, estava numa espécie de “meínho”  e só via braços à minha volta. Numa tentativa de me tentar libertar ferrei um dos braços que me agarrava sem saber sequer a quem pertencia. Rapidamente ganhei espaço. Vi um colega a empurrar os outros e finalmente tinha espaço para respirar. Estava sentada no chão a sentir o alívio quando levei duas valentes bofetadas na cara.  Vieram do braço que havia mordido. O rapaz tinha afastado todos os outros para me poder acertar em cheio. Comi e calei. É uma das poucas memórias que tenho de me defender. Ainda assim – e recorrendo à linguagem futebolística – foi uma defesa incompleta, uma espécie de corte para canto.

 

Depois disso, já na EB 2,3 ,  estava a subir as escadas em direção ao campo de futebol quando um rapaz se cruza comigo e me apalpa o rabo. Aquilo já tinha acontecido outras vezes, com outros rapazes, e naquele dia eu decidi que não passaria só com uma ameaça vã. Virei-me para trás, vociferei-lhe qualquer coisa e não sei se cheguei a levantar a mão quando o vejo a enfrentar-me. Ia bater-me. Disse-me:

- O que é que foi? Vais fazer o quê?

Queria escrever que levei umas estaladas, mas que não me calei. Estaria a mentir. Encolhi-me. Tive medo.  Acho que nunca cheguei a contar isto a ninguém. 

 

Em 2018 viajei sozinha para a Grécia como aliás já tinha feito para outros destinos, sempre sem grandes chatices. Instalei-me em Glyfada uma cidadezinha simpática à beira-mar. Já quase no final da viagem parti o telemóvel. Ainda funcionava, mas o ecrã estava desfeito. Sempre que carregava num número assumia outro e ia bloqueando. Ora um minuto. Ora cinco. Ora dez... Estava na praia. Tinha acabado de ler o meu livro quando o tempo começou a mudar. O céu ficou cinzento, começou a chuviscar. Decidi que era tempo de voltar ao hotel. Voltei a pé como de costume. Na caminhada de regresso, parei para voltar a tentar desbloquear o telemóvel. Estava absolutamente imersa naquela ação quando senti um homem a agarrar-me por trás. A mão direita na minha anca. A cara no meu pescoço. A mão direita na minha barriga. Segredou-me qualquer coisa enquanto me prendia. Não sei quantos segundos foram. Consegui virar-me.  Encarei-o. Não sei se o encarei mesmo ou se foi só o tempo de me virar. Não estava sequer a perceber bem o que estava a acontecer. Entrei em pânico, consegui soltar-me e comecei a correr. Cruzei-me com um casal grego mais velho. Perceberam que alguma coisa não estava bem. Não sei se assistiram à cena. Tentaram falar comigo em grego, mas eu nem inglês conseguia articular. Não pensei sequer em polícia. Corri até ao hotel. Olhei para trás várias vezes. Acho que estava a tentar perceber se aquilo estaria realmente a acontecer. Cheguei ao hotel, abri o computador. Continuava sem telemóvel. Tentei falar com amigos, lembro-me de trocar mensagens no chat do instagram. Tentei acalmar-me. Sem sucesso. Não sei se foram ataques de pânico, crises de ansiedade. Não sei que horas eram. Comecei a achar-me ridícula. Aquilo não era nada. Não tinha acontecido nada de realmente grave. Decidi que devia sair do hotel para comprar um telemóvel e falar com alguém. Estava certa de que me conseguiria acalmar se falasse ao telefone com alguma amiga. Não sei que horas eram, mas sei que a noite já tinha caído. Era outubro. Tinha medo de sair do hotel, mas também não conseguia estar ali. Que estupidez. Uma estupidez pegada. Sabia que nada daquilo era racional. Achava eu. Agora já não acho. 

Saí do hotel em pânico. A senhora da receção a olhar para mim sem perceber o que se passava. Estava completamente alucinada sem me conseguir explicar. Comprei o telemóvel mais barato que encontrei e regressei ao hotel certificando-me sempre que não estava a ser seguida. Cheguei ao hotel e liguei a uma amiga. Não ajudou. Tenho noção de que não me estava a explicar bem. Queria desabafar, mas ao mesmo tempo policiava-me. Tentava acalmar-me. Tentava agarrar-me ao pensamento de que no dia seguinte estaria melhor. Precisava de dormir e depois poderia passear, voltar a explorar Atenas. Espreitava o tempo para os dias seguintes: chuva, chuva, chuva. Faltavam dois ou três dias para o meu voo e naquele momento eu sentia que não conseguia passar nem mais duas horas sozinha naquele quarto. Perfeitamente irracional. Estava segura ali, mas ainda sentia o homem atrás de mim, a agarrar-me. A cara no meu pescoço. Não me conseguia abstrair, nem distrair. Ansiedade. Ansiedade. Ansiedade. Decidi que viria embora naquela mesma noite. Ainda bem que comprei o telemóvel, até para comprar a merda do bilhete do voo precisava da porcaria de um telemóvel. Comprei um voo para as 5h da manhã, teria de fazer escala em Frankfurt. Ou seria Munique? Já não sei. As memórias dessa noite não claras. 

 

Cheguei a casa e desatei num pranto. Tinha vergonha de assumir que tinha voltado por causa daquele incidente. A minha mãe ligou-me e admiti. Achei que não faria qualquer sentido mentir-lhe, dizer-lhe que ainda estava pela Grécia quando estava já em casa. Mas devo admitir que o meu primeiro pensamento foi que não sairia de casa nesses dois dias. Não diria a ninguém que regressara mais cedo porque isso implicaria contar o que aconteceu. Implicaria dizer que não tinha conseguido defender-me, nem lidar com a situação. Ensinam-nos de pequeninas que incidentes como estes acontecem. Não são nada de mais. Não devemos dramatizar. Não aconteceu nada. Limpemos as lágrimas. Não temos motivos para nos sentirmos inseguras só porque de repente, no meio da rua, um homem nos agarra, nos prende contra si, contra o seu sexo e nos beija o pescoço. Devemos continuar a sair à rua sem medo, como se não fosse nada, embora seja tudo.