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EP 15 - Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer

11 de abril de 2022

 Longe vai o tempo em que o antigo selecionador nacional surgia na tv, não a orientar a equipa das quinas, mas a explicar-nos a diferença entre os termos utilizados no Brasil e em Portugal. Anos passaram e a tecnologia veio dar uma ajuda preciosa, encurtando distâncias. Hoje é tão fácil acompanhar a liga alemã, como a portuguesa. O campeonato brasileiro também nos chega pelos jornais e televisão onde vemos portugueses a contribuir ativamente para feitos históricos. Assim já não estranhamos quando ouvimos “torcida” em vez de claque, “time” em vez da equipa ou quando nos falam da camisa do jogador e não da camisola. Três pequenos exemplos num universo gigante. 

Quando o Faya partilhou comigo a sua experiência futebolística mais intensa, fê-lo com o seu bonito sotaque carioca. Eu fiquei maravilhada, mas percebi que teria um problema. A história de hoje veste vermelho e preto, perdeu naturalmente o sotaque, mas quis manter algumas expressões e termos utilizados, espero que não percam a magia com a minha pronúncia do norte. Recebam este episódio como um abraço linguístico entre Brasil e Portugal.

Relato do Faya

A final da Libertadores deu-se num sábado, 23 de novembro de 2019, mas para mim essa final começou quase um mês antes. No dia 24 de outubro eu estava sentado no chão de um bar, onde cerca de quatro mil pessoas assistiam à meia final – Flamengo - Grémio. Decidi, no meio de uma euforia tremenda – e também muito álcool – que iria viajar para acompanhar o Flamengo na final. 

O Flamengo ganhava já por três a zero quando me sentei no meio da multidão, peguei no meu telemóvel e comecei a comprar as passagens áreas que me levariam até Santiago do Chile, cidade destinada a receber a final. O FLA acabou por ganhar o jogo por 5-0.  O carimbo da passagem até à final foi marcado por muita festa. 7.737 Km separam Lisboa do Rio de Janeiro e mesmo assim, mesmo com um oceano pelo meio, Lisboa cheirava a Rio de Janeiro. O samba aquecia o inverno da cidade, a multidão vestida de vermelho e preto transportava-nos. Fazia com que nos sentíssemos lá - no Maracanã - a celebrar o feito pelo qual esperamos há mais de 30 anos. O Flamengo estava na final da Libertadores!

Os dias passaram e o clima político no Chile foi aquecendo cada vez mais e pelos piores motivos. As manifestações em Santiago do Chile intensificaram-se. O que levou a organização da copa a ponderar a transferência da final para outra cidade. Eu comecei a ficar nervoso. Ainda não tinha bilhete para o jogo, mas as viagens já estavam compradas. Tinha sido uma verdadeira saga e outra se preparava. Mas tudo se manteve. O local permaneceu inalterado e os ingressos foram postos à venda. E aqui começou mais uma luta. Comprar bilhetes para a final foi uma verdadeira dor de cabeça. Um desespero. 

Acabei por conseguir comprar a uma agência de turismo de Santiago que apenas autorizava o levantamento do bilhete na própria cidade, no dia do jogo. Ou seja, no final de contas, eu nem tinha a certeza se conseguiria de facto ingresso para assistir à partida. Com muita pressão e desgaste tudo se deu e completei a compra dos meus voos que se apresentavam da seguinte maneira: Lisboa - Madrid, Madrid - São Paulo, São Paulo – Rio de Janeiro. E depois de um dia de trabalho no Rio mais duas escalas até Santiago do Chile. Ora no meio desta já pequena odisseia, o que acontece?

Isso mesmo! 

A Confederação Sul-Americana decide alterar o jogo para Lima, no Peru. Eu precisava de comprar uma passagem de Santiago para Lima e em poucas horas o preço das viagens duplicaram. Depois de muito stress e suor e muitos euros, consegui. A final ainda estava longe, mas já me provoca ansiedade e um desgaste quase equiparável aos minutos finais de um jogo difícil.

O dia chegou e com toda esta bagagem lá aterrei eu de madrugada em Santiago do Chile, com milhares de km em cima, 34 horas de voos e poucas horas de sono. A invasão de adeptos/torcedores no aeroporto foi tal que demorei cerca de 2h40 só para conseguir tratar da burocracia.

O ambiente na cidade era incrível, super amigável. Uma final feita a uma só mão numa cidade neutra era uma estreia na América do Sul. Santiago fervilhava e as cores dos dois clubes inundavam as ruas. Toda esta envolvência foi incrivelmente boa, aliás a própria convivência com os torcedores do River Plate foi muito boa. Uma ou outra provocação, mas tudo num clima muito amigável, boa onda. A torcida do Flamengo era visivelmente maior, mas do nosso lado havia também muito mais tensão. O River estava já acostumado a presenças nas finais, para nós do Flamengo, era uma ansiedade e expectativa brutal. 

Eu fiquei hospedado numa casa com um grupo de amigos. Somos amigos de estádio. Há já quinze anos que assistimos juntos aos jogos do Flamengo. Desta vez não podia ser diferente. Decidimos alugar um autocarro para nos deslocarmos do sítio onde estávamos até ao estádio. O jogo era às 15h, mas as recomendações locais sugeriam que chegássemos muito antes e foi o que fizemos. Da lista de recomendações passámos para a lista de proibições: estava proibido o uso de gorros, bonés e óculos escuros. A lógica era permitir uma rápida identificação dos adeptos. Era permitido apenas o uso de pequenas bandeiras, até um metro e meio. 

Depois da viagem de autocarro e de uma longa caminhada – onde as torcidas conviviam num clima tranquilo, sem conflitos – chegámos finalmente ao estádio. Uma desilusão. O estádio era muito feio, muito seco, com muita poeira e ficava do lado de uma mina desativada. Os ponteiros do relógio apontavam o meio-dia. O calor intensificava a poeira. Os quase 40 graus que se faziam sentir tornavam-se insuportáveis sem boné e óculos que haviam sido proibidos. Até as pequenas bandeiras que tinham tido luz verde eram agora banidas à porta do estádio. Um dos meus amigos viu-se obrigado a deixar a sua pendurada nas grades à porta do estádio. Não era uma bandeira qualquer. Era uma recordação do pai que já partira e a deixara como legado. Se tivesse sorte no final poderia recuperá-la. Mas durante o jogo teria de figurar ali, naquele muro de metal coberto por outros amuletos e recordações da nação rubro negra. 

Quando entrámos no estádio fiquei assustado com a presença de adeptos do River.  Atrás de cada baliza ficava a torcida original de cada time, mas nas centrais tinha uma misturada e dava a impressão de ter uma presença mais forte de adeptos do River. Já estava a ficar desiludido com o tamanho do suporte da equipa adversária quando me apercebi que afinal as bancadas estavam cheias de Peruanos. Acontece que a camisola da seleção do Peru é muito similar à do River Plate: branca com uma lista diagonal vermelha. Demorei a entender que aquela mancha que víamos na bancada tratava-se afinal de torcedores peruanos que levaram a camisola da sua seleção.

Passava pouco do meio dia. O estádio era quente, muito quente. Muito desconfortável. O banheiro um caos, com água a vazar por todo o lado. Não havia muita comida. Não existia água para beber. Apenas pepsi e quente. Aguardámos 3 horas até ao início da partida debaixo de um sol intenso. O estádio não tinha uma única cobertura, o que se traduzia na inexistência de sombras.  O jogo ainda não tinha começado e já as torcidas estavam exaustas. 

Três da tarde. Hora local. 

O jogo começa. Muito estudado, não muito bonito. 

O River apostava na marcação cerrada, muito intensa e eficiente. O Flamengo não conseguia sair a jogar. Eles, talvez por terem mais experiência nas finais, estavam mais confiantes. Os jogadores estavam mais à vontade que os jogadores rubro negros. Em suma, os nossos jogadores não estavam a ser os mesmos das últimas partidas, acusavam (talvez) alguma pressão e o River tirava partido disso. O jogo seguia feio, sempre debaixo de um calor insuportável. Até que aos 15 minutos do primeiro tempo surge o primeiro golo. Golo do River Plate. Foi mais um golpe duro nesta experiência. O Flamengo até estava habituado a virar jogos, a começar a perder e virar o resultado, mas nunca é bom sofrer um golo tão cedo numa final. A primeira parte estava a ser sofrida pelo que se passava em campo e fora dele. O calor sempre intenso, abrasador, levou-me a uma insolação. Comecei a sentir-me fraco, fiquei tonto, com a visão turva, quase caí no chão. Os amigos de bancada ajudaram-me. Trouxeram-me duas pepsis e qualquer coisa salgada para comer, o que acabou por me dar combustível para aguentar o resto do jogo. As torcidas continuavam a cantar, mas a baixo ritmo, ninguém aguentava bem aquele calor. Mas n cer5em tudo era mau. Acreditava que aquelas condições atmosféricas acabariam por afetar também o River. Seria difícil conseguirem manter aquela pressão, aquele ritmo, debaixo de temperaturas tão altas. Eles estavam a destruir com muita eficiência o Flamengo que depois do golo ficara ainda mais nervoso. Não conseguia ter efetividade no ataque. As jogadas estavam a ser dominadas. Os nossos laterais não conseguiam sequer virar de frente para o campo do River que a marcação já chegava em cima. A marcação dos atacantes do River Plate era incrível. Estavam a jogar num ritmo sobre-humano e o primeiro tempo acabou marcado pelo domínio indiscutível do River (ou da equipa adversária).  

O segundo tempo trouxe um Flamengo melhor e alguma sombra à nossa bancada o que ajudou a refrescar a torcida. Por sua vez, os adeptos do River continuavam ao sol, o que talvez justifique o facto de terem cantado menos. Ninguém aguentava aquele calor. Estavam exaustos. Era fácil de perceber. 

Os primeiros 10, 15 minutos da segunda parte desenrolam-se de uma forma muito similar à da primeira. As orientações do mister Jorge Jesus ao intervalo surtiam algum efeito. O Flamengo conseguia ganhar um pouco mais de terreno. O time voltou um pouco melhor, mas ainda assim sem grande efetividade. Os minutos foram passando... O River acabou por desperdiçar algumas oportunidadese o Flamengo começou a ter oportunidades de verdade, bolas na área, bons remates, o que nos dava uma esperança crescente. 

Mas o tempo foi passando, passando, passando. Aos 30 minutos o jogador do Flamengo, o Gerson que foi contratado à Roma no início do ano, sente uma lesão nos gémeos e sai. Isso mexe com a confiança da torcida. Para o seu lugar entra um jogador que estava a recuperar de uma lesão, de uma fratura, o Diego. Por esse motivo, era um jogador que não usufruía de unanimidade na torcida, mas que sempre demonstrou muito profissionalismo e que, apesar de tudo, conseguiu recuperar-se em tempo recorde para esta final. 

O Flamengo começa claramente a ganhar um pouco mais de terreno. A minha teoria é de que aquilo que eu pensei no final do primeiro tempo fazia sentido. O River não conseguia manter o ritmo de marcação e o Flamengo começava a ganhar um pouco mais de espaço em campo. Vai conseguindo criar jogadas com mais facilidade, consegue fazer a bola fluir sem a pressão exacerbada do River. O Gallardo, técnico do River Plate, indo de encontro à minha teoria, muda 3 jogadores de seguida para recuperar o fôlego. Muda inclusive jogadores de frente, no meu entender para que conseguissem manter essa pressão até ao final do jogo. Eles estavam muito cansados. A própria torcida do River Plate nesse momento já não cantava. Estavam exaustos. Aliás, há um lance em que o Gallardo se levanta e vai inclusive pedir apoio porque eles simplesmente já não cantavam, deviam estar exaustos. 

Mas voltando às quatro linhas... o jogo continua com o River a tentar maturar algumas jogadas de golo, a tentar manter essa pressão alta, a bola no ataque. E eis que, aos 43 minutos do segundo tempo, numa jogada de ataque do River Arrascaeta rouba a bola, passa a para Bruno Henrique e... (entra relato)

Gente, nessa hora... Nessa hora foi uma catarse que parecia inigualável. Que parecia insuperável. Aquele golo fez justiça ao ano do Flamengo, à trajetória, ao percurso do clube até ali. À sua reestruturação levada a cabo nos últimos anos. Estava tudo ali, naquele golo. 

Eu estava com três amigos e uma amiga. No momento do golo, abraçámo-nos e eu não sabia se chorava ou não. Estava a segurar-me. Estava exausto, toda a gente estava exausta, mas ninguém parou de cantar. E aquele golo, aquele golo... a torcida começou com um cântico que já habitual e que faz referência à vitória sobre o Liverpool em 81.  E aquela sensação, de estarmos todos juntos, todos envolvidos naquele cântico é indescritível. Quem vai ao estádio sabe, sabe como este momento é um momento muito único, muito intenso, e talvez seja isto – seja este momento – que nos faz ir ao estádio, que nos motiva às maiores loucuras para estar ali a acompanhar, a viver tudo em primeira mão. Talvez isso seja o porquê de as pessoas irem ao estádio para viverem essa experiência de cantar em uníssono. Eu não sou uma pessoa religiosa, mas acho que isto equivale muito a um culto coletivo, quando todos fazem uma oração muito intensa na mesma direção.  

O cântico estava de uma intensidade especial e inesquecível por todas as circunstâncias que envolviam aquele jogo. Quase no final do cântico, no refrão, o Flamengo está a trocar uma bola ali na nossa defesa, e então o Diego, recém recuperado de uma fratura, pega na bola, ainda na zona defensiva do Flamengo, e lança-a na direção de Gabigol no ataque do River. Um lance que inicialmente não parece ter qualquer possibilidade. Não sai especialmente bem colocado e o Gabigol estava cercado por jogadores do River Plate. E aí acontece o imponderável. O principal jogador da defesa do River Plate que tinha vindo a anular o Gabigol, falha o corte, a bola sobra para a perna esquerda do Gabigol, que é a sua perna boa, quase na marca do penálti e, quando ele se prepara para chutar, um segundo antes dele chutar parece que acontece um choque, parece que uma buzina de energia é descarregada na arquibancada. Houve uma interrupção, uma suspensão de um segundo no cântico, a torcida estava em êxtase ainda a comemorar o primeiro golo que tinha sido dois minutos antes, e mesmo no meio do refrão, faz-se uma pequena pausa: cântico, ar, emoções, tudo em suspenso... o que vai acontecer... o que vai acontecer... e então ele faz o segundo golo do Flamengo. 

Este segundo golo, talvez seja a experiência mais intensa que eu tenha tido na minha vida. Que venha a ter. Não sei se vou conseguir repetir todos estes fatores, mesmo que o Flamengo venha a ganhar novamente a libertadores e eu esteja lá. Foi algo inexplicável... Eu sei que precisam que eu explique, mas talvez eu não consiga… O que vos posso dizer é o que me lembro de ter feito na hora...Eu caí de joelhos. Caí de joelhos e voltei a cabeça para o chão. Tapei o rosto com as mãos e...comecei a chorar. Comecei a chorar e demorei pelo menos um minuto para me conseguir levantar. Toda a gente estava (procura palavra)... cada um com a sua catarse individual, abraçando-se, beijando-se, chorando, berrando. Cada pessoa reagia de uma forma diferente, mas a grande maioria das pessoas chorava. Toda a gente chorava. Os meus amigos ajudaram-me a levantar. Abraçámo-nos. Eu não conseguia parar de chorar. Fiquei cerca de 15 a 20 minutos a chorar. Eu não sabia, não tinha noção de que era possível ter assim uma crise de choro de alegria. Não sabia. Eu tive uma (procura palavra) crise, não sei como diagnosticar. Tive um episódio (ri) psiquiátrico, psicológico, enfim, um episódio de alegria que eu não conseguia parar de chorar. Eu estava em êxtase. O Flamengo conquistou a Copa dos Libertadores 38 ano depois e eu estava lá.