26 de maio de 2023


Rio de Janeiro

27 de abril de 2023

23:30

Divido-me entre comer arroz com a mão, enquanto ando de um lado para o outro no pequeno corredor do quarto, e limpar a gordura dos dedos para escrever. Acrescento pequenos intervalos para assoar o nariz congestionado pelo choro que deixou de ser só uma pequena comoção. Vivo picos de empatia aumentada adornada com o
festival hormonal. Sei lá bem.

Acabo de chegar de um Botafogo – Ypiranga para a Copa do Brasil. Foi um jogo bem conseguido com a equipa da casa a garantir a continuidade na competição, mas não foi isso que me deixou neste estado. Isto vem lá de trás, vem do momento que decidi pegar na biografia do Garrincha e elegê-la como a leitura para esta viagem. Opção
arriscada para uma romântica e nostálgica incurável como eu, bem sei. Mergulhei naqueles anos dourados do Botafogo e da Seleção Brasileira. O livro provocou outras leituras. Dou por mim a partir para outras histórias a procurar nas ruas vestígios dessa época, a perder-me do presente e a divagar no Maracanã, a tentar visualizar naquele mesmo relvado personagens do livro: Nilton Santos, Didi, Garrincha, Zagallo, Manga...

Este Botafogo –Ypiranga foi o meu primeiro jogo no Nilton Santos. Apesar de não ter a história nem a imponência do "Maraca", consegue mexer comigo. As histórias do Galeano palpitam, misturam-se com o som do samba que nasce na bancada oposta à minha. Quando o jogo termina eu já estou embalada pelo que me chega do passado e pelo que acontece no presente. Fico a ver o estádio despir-se até já quase só partilhar a bancada com a imprensa que fecha o jogo. Olho uma última vez, inspiro o momento e desço as escadas até à entrada. Pego no telemóvel para decidir como regresso a casa e apercebo-me de um burburinho, de uma pequena agitação junto ao elevador. Deduzo que seja alguém conhecido e ignoro. Chamo um uber e percebo que ainda vou ter de esperar um pedaço. Volto a levantar a cabeça e é então que o vejo.

Dezenas de histórias ali, naqueles quase dois metros que condensam imponência e fragilidade. Está tudo ali. É ele. Uma das personagens do livro em carne e osso. A mulher do lado direito, sempre a segurar-lhe a mão. Sempre a indicar-lhe o caminho. O meu coração bate mais forte e começo a ligar os pontos. Tinha sido o dia do Goleiro. O Botafogo convocou-o para uma homenagem para assinalar a sua carreira no dia que o Brasil decidiu dedicar-lhe. Manga, guarda-redes do Botafogo e da Seleção Brasileira. Idolatrado no Brasil e Uruguai. O homem que dispensava luvas e barreiras, o homem que dizia que não se podia ter medo, o homem que partiu inúmeras vezes os dedos, tantas até se lhe desfigurarem as mãos. O homem que tem um dia nacional em sua homenagem e que passou por dificuldades que não associamos a ídolos que atravessam os tempos. Oitenta e seis anos que ajudam a escrever a história do futebol brasileiro. A glória e a fragilidade a dividirem morada. Um olhar cheio de água a responder aos pedidos dos que se aproximam.

- É ele, é ele!

Desabo num choro interno porque está tudo à vista, está a nu, crua a verdade que não queremos ver: os nossos ídolos também não têm fórmulas mágicas para escapar ao tempo. E como somos duros com eles, venerámo-los desenfreadamente só para os esquecer depois.

Fico sem saber bem como agir. Estão à minha frente, vejo-os (a ele e à mulher), parecem-me cansados. Falo com Cecília, esposa de Manga, pergunto-lhe com alguma condescendência, confesso, estou já comovida com os dois:

- Estão cansados, não estão?

- Não, não!Estamos felizes, ganhámos, graças a Deus.

Fico a fazer-lhe companhia.

Ela olha-o com admiração e ele retribui. Juro-vos por tudo. Casados há mais de 40 anos e a cuidarem-se à vista de todos. Ela segura-lhe nas coisas, conta-me com um brilho orgulhoso que o Botafogo tem uma camisola em sua homenagem para eu passar na loja para ver. Fala-me em espanhol, mas diz que percebe bem o português.
Pergunta-me se não quero tirar uma fotografia também. Digo-lhe que não quero incomodar. Diz-me que não, não, que tire, ela é que não sabe tirar bem.

Enquanto isso os pedidos acumulam-se à volta de Manga. Ele vai respondendo aos fãs, pousando para as fotografias levantando sempre a mão direita. É como se aquela mão fosse um troféu. As duas! Para mim são uma espécie de portal para a história do futebol. Aqueles dedos tortos que certamente lhe dificultam a vida que já não pertence à bola, contam muitas histórias. Contam que dispensava luvas e que raspava areia nas mãos para agarrar melhor a bola. Contam-nos como se lançava ao adversário com destreza e uma dose de loucura. Contam-nos como ajudaram a desenhar ataques de Garrincha ou Zagallo ou Pelé. São uma enciclopédia do futebol brasileiro e fazem-me pensar que não lhe retribuímos o suficiente.

O diretor da Casa dos Artistas, onde agora vivem Manga e Cecília, disse numa entrevista: “Abrigar o Manga é abrigar uma das páginas mais lindas do futebol brasileiro”. Este episódio, vê-lo ali com os seus 86 anos, sacudiu-me. Não sei se o consigo verbalizar, mas foi isso que me fez desabar num pranto noite dentro. A lembrança para celebrar os nossos enquanto os temos, para lhes devolver a alegria e emoção que nos deram. As homenagens fazem-se em vida e no futebol como em tudo o resto, tendemos a esquecer muito rápido as alegrias que vivemos.